A luta da Europa pela soberania digital tende a ir para além da legislação

A luta da Europa pela soberania digital tende a ir para além da legislação

A dependência esmagadora da Europa em relação à infraestrutura de nuvem controlada por gigantes tecnológicos dos EUA atingiu um ponto crítico. Especialistas estimam que aproximadamente 90% da infraestrutura digital europeia—nuvem, computação e software—está nas mãos de empresas não europeias, predominantemente norte-americanas. Este desequilíbrio, para além de um problema de mercado, está sendo considerado um profundo desafio de soberania, segurança e controle legal que ameaça a autonomia estratégica do continente.

Um conflito legal no coração da dependência

O cerne do problema reside em um conflito legal direto entre a legislação dos EUA e a europeia. O CLOUD Act dos EUA de 2018 confere às autoridades americanas o poder de obrigar empresas de tecnologia sediadas nos EUA a fornecer dados solicitados, independentemente de onde esses dados estejam armazenados no mundo. Esta lei coloca-se em rota de colisão frontal com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia, um dos quadros de privacidade mais rigorosos do mundo.

Este conflito torna-se uma barreira prática e intransponível através do Artigo 35 do RGPD, que exige a realização de uma Avaliação de Impacto sobre a Proteção de Dados (AIPD) antes da implementação de qualquer tecnologia que apresente “um elevado risco para os direitos e liberdades das pessoas”. Quando aplicada aos serviços dos hyperscalers norte-americanos, estas avaliações identificam sistematicamente o CLOUD Act como um risco significativo e frequentemente inaceitável.

Qualquer contrato privado de um cliente europeu com um fornecedor de nuvem dos EUA está subordinado à lei federal americana. Um mandado judicial emitido ao abrigo do CLOUD Act obriga legalmente uma empresa a entregar dados, anulando quaisquer garantias contratuais de residência de dados ou privacidade. Além disso, estes mandados costumam vir acompanhados de uma ordem de silêncio, que proíbe legalmente o fornecedor de informar o cliente sobre o acesso aos seus dados.

Casos práticos

Perante este impasse legal, um número crescente de autoridades públicas na Europa começa a dar passos concretos para recuperar o controle.

O Ministério Federal da Economia, Energia e Turismo da Áustria tornou-se um exemplo pioneiro. Em vez de migrar de um fornecedor de nuvem dos EUA, o ministério tomou a decisão deliberada de não adotar um. Após uma avaliação minuciosa, migrou 1.200 funcionários para a plataforma europeia de colaboração de código aberto Nextcloud. Para Florian Zinnagl, CISO do ministério, e Martin Ollrom, CIO, o principal motor nunca foi a economia de custos, mas a soberania.

Em declaração ao portal The Register, Zinnagl comenta”Trata-se de manter o controle sobre os nossos próprios dados e os nossos próprios sistemas”. O projeto, concluído em apenas quatro meses, desencadeou um efeito em cascata, com vários outros ministérios austríacos a seguirem o exemplo.

Adicionalmente, o Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia anunciou em novembro de 2025 que iria substituir o seu software Microsoft Office por uma alternativa europeia, o OpenDesk. A decisão, vista como uma resposta direta à pressão política dos EUA (que já sancionou funcionários do TPI), foi catalisada por um incidente onde o procurador-chefe foi temporariamente bloqueado da sua conta de e-mail Outlook. O novo sistema, apoiado pelo governo alemão, agrega serviços de fornecedores europeus como a Nextcloud e a Collabora.

Na Alemanha, o estado de Schleswig-Holstein está empreendendo uma migração ainda mais ambiciosa, com o objetivo de substituir os produtos Microsoft por alternativas de código aberto para os seus 30.000 funcionários públicos. Este projeto inspirou uma colaboração europeia mais ampla, levando à criação, em julho de 2025, do Consórcio Europeu de Infraestruturas Digitais para Bens Comuns Digitais, uma parceria entre Alemanha, França, Itália e Países Baixos.

Obstáculos estruturais

Apesar destes sucessos localizados, a escala do déficit tecnológico da Europa é colossal. Uma análise recente do Instituto Australiano de Política Estratégica concluiu que, das 64 tecnologias fundamentais avaliadas, a Europa não lidera em nenhuma. Este contexto de dependência criou uma oportunidade de mercado que os hyperscalers americanos estão explorando através do marketing de soluções de “nuvem soberana”.

Críticos como Cristina Caffarra, fundadora da Eurostack Foundation, alertam que esta tendência representa uma perigosa “lavagem de soberania” (sovereignty washing). Colocar centros de dados em solo europeu ou estabelecer parcerias com operadores locais não resolve o problema fundamental: enquanto a empresa-mãe for americana, ela permanece sujeita ao CLOUD Act.

“Uma empresa sujeita às leis extraterritoriais dos Estados Unidos não pode ser considerada soberana para a Europa. Simplesmente não funciona”, argumenta Caffarra. Ela compara esta tática ao fracasso da iniciativa Gaia-X, que, na sua opinião, foi minada por dentro quando permitiu a entrada da Microsoft, Google e AWS.

Um risco ainda mais insidioso é a aquisição de provedores europeus por entidades americanas, anulando as escolhas soberanas dos clientes. Um exemplo deste cenário ocorreu em novembro de 2025, quando a gigante americana de serviços de TI Kyndryl anunciou a intenção de adquirir a Solvinity, um provedor de nuvem gerida holandês escolhido por entidades governamentais, incluindo o município de Amsterdã, precisamente para reduzir a dependência de empresas americanas.

Estratégia, não apenas regulamentação

Para Caffarra e outros defensores da autonomia digital, a resposta da Europa tem sido inadequada. Iniciativas de regulamentação como a Lei dos Mercados Digitais (DMA) e os processos de concorrência são considerados distrações ineficazes que não abordam a infraestrutura subjacente. “O que os europeus não percebem é que, enquanto regulamentam o comércio eletrônico e as lojas de aplicativos, a infraestrutura digital na qual tudo assenta é agora propriedade de não europeus”, afirma.

A solução proposta vai além da regulação e centra-se numa estratégia industrial assentada em três pilares: Comprar Europeu (alterar as regras de contratação pública para priorizar provedores europeus em infraestruturas críticas), Construir Europeu (incentivar o setor privado a investir em alternativas) e Financiar Europeu (criar um fundo dedicado para apoiar o desenvolvimento da pilha tecnológica europeia, com os organismos públicos a atuarem como clientes de lançamento).

O objetivo não é o isolamento ou o protecionismo cego, mas a resiliência. A Europa não precisa alcançar uma independência total, mas precisa urgentemente de reconquistar uma parte significativa do seu próprio mercado. “Podemos, por favor, ficar com 30 a 40% para nós?”, questiona Caffarra.Ajude o Diolinux a permanecer independente e crescente: seja membro Diolinux Play!