A comunidade de software livre começou a semana com uma notícia pesada: a Zig Software Foundation anunciou oficialmente sua saída do GitHub, migrando todo o desenvolvimento da linguagem para o Codeberg, uma plataforma de hospedagem sem fins lucrativos. A decisão veio acompanhada de duras críticas à direção que o GitHub tem tomado nos últimos anos, em especial ao que os líderes do Zig descrevem como uma obsessão crescente por inteligência artificial em detrimento da qualidade de engenharia da própria plataforma.
Embora pudesse soar como mais uma mudança de hospedagem entre tantas outras que acontecem no mundo open source, o caso ganhou atenção mundial por envolver um problema técnico sério que afeta diretamente a confiança na infraestrutura do GitHub: um bug no GitHub Actions que permaneceu negligenciado por anos.
O bug que virou símbolo do problema
Toda a controvérsia começou com um ticket aberto em abril de 2025 chamado “safe_sleep.sh rarely hangs indefinitely”. O problema descrevia uma falha grave em um script utilizado pelos runners do GitHub Actions para pausar normalmente a execução de processos. Em vez de “dormir” como deveria, o script podia entrar em um loop infinito consumindo 100% da CPU, sem qualquer término automático.
Isso acontecia porque uma alteração feita em fevereiro de 2022 substituiu o clássico comando sleep por um script chamado safe_sleep, cuja lógica era perigosamente falha. Caso o processo não fosse agendado pelo sistema no intervalo correto de tempo, ele nunca atingia a condição de saída, travando permanentemente.
Segundo desenvolvedores do Zig, como Matthew Lugg, o impacto foi muito além de um comportamento inconveniente. Alguns processos afetados permaneceram em execução por centenas de horas, derrubando serviços inteiros dos runners de CI e impedindo o funcionamento normal do sistema de testes automatizados do projeto por semanas.
Esse cenário exigia intervenção manual frequente para liberar máquinas presas em loops, algo praticamente inviável quando se trata de pipelines contínuos que deveriam ser autogerenciáveis e estáveis.
A correção tardia
A correção para esse problema acabou sendo incorporada em 20 de agosto de 2025, mas vinda de outro ticket iniciado ainda em fevereiro de 2024. Apesar disso, o ticket original aberto em abril de 2025 permaneceu aberto até 1º de dezembro, sem qualquer atualização pública informando que o bug já havia sido resolvido.
Para piorar o quadro, outro bug ligado ao uso excessivo de CPU permaneceu sem solução até a redação deste artigo, o que reforçou entre os desenvolvedores a percepção de descaso com a estabilidade das ferramentas mais básicas do GitHub.
Foi nesse contexto que Andrew Kelly, presidente da Zig Software Foundation e principal desenvolvedor da linguagem, anunciou a migração para o Codeberg. Ele destacou problemas persistentes no GitHub Actions, incluindo o que chamou de “vibe-scheduling”, um comportamento no qual jobs de CI são executados de forma aparentemente aleatória, sem previsibilidade. Segundo Kelly, esse descontrole causou acúmulo de tarefas nos pipelines do Zig, chegando ao ponto de impedir até a validação de commits na branch principal do projeto.
Para ele, a raiz do problema estaria em uma mudança de foco na empresa, especialmente após declarações da liderança do GitHub incentivando desenvolvedores a “abraçar a IA ou sair do caminho”. A percepção é de que, desde então, recursos de engenharia estariam migrando para produtos ligados a modelos generativos, como o Copilot, enquanto ferramentas essenciais de desenvolvimento ficam em segundo plano.
Reforço externo às críticas
As afirmações de Kelly não ficaram isoladas. Jeremy Howard, cofundador do Answer.AI e do Fast.AI, publicou análises sobre o caso afirmando que as reclamações fazem sentido. Ele ressaltou que o bug do safe_sleep era tão óbvio em sua implementação que dificilmente escaparia de uma revisão cuidadosa.
Howard também lembrou que um patch independente para o problema ficou mais de um ano sem análise, chegou a ser automaticamente fechado por um bot do GitHub em março de 2025 e só retornou ao fluxo após pressão externa. Para ele, esse conjunto de falhas dificilmente ocorreria em “qualquer organização de engenharia razoavelmente funcional”.
Após a repercussão, Andrew Kelly suavizou o tom de suas declarações, mas manteve a decisão de mudança. E o Zig está longe de ser um caso isolado. No mesmo período, Rodrigo Arias Mallo, criador do navegador Dillo, anunciou planos de também abandonar o GitHub. Ele citou preocupações com a crescente dependência de JavaScript na plataforma, a possibilidade de negação de serviço, piora da usabilidade, ferramentas de moderação insuficientes e um foco excessivo em IA generativa, que segundo ele estaria prejudicando o espírito da web aberta.
Enquanto isso, o Codeberg tem se beneficiado desse descontentamento. O serviço viu seu número de membros apoiadores mais que dobrar em 2025, passando de cerca de 600 para mais de 1.200.
O lado financeiro do GitHub
Paralelamente, o GitHub segue crescendo financeiramente graças à aposta em IA. A Microsoft informou que o GitHub Copilot ultrapassou 1,3 milhão de assinantes pagos em 2024 e alcançou cerca de 15 milhões de usuários ativos em 2025, embora não especifique quantos desses efetivamente pagam pelo serviço.
Em 2024, a empresa revelou ainda que o Copilot foi responsável por cerca de 40% do crescimento anual da receita do GitHub, que operava com um faturamento próximo a US$ 2 bilhões por ano.
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